No contexto das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril de 1974, gostaria de relembrar que a primeira edição do FITEI foi em 1978, a sua fundação em 1977, e que as mulheres e homens que fundaram a cooperativa, o seu festival e que idealizaram a sua missão, foram visionários, na identificação das suas prioridades e da sua latência. 50 anos depois do 25 de Abril, anos vividos em democracia, com profundas mudanças, entre elas a criação do Serviço Nacional de Saúde, a liberdade de expressão, a democratização da escola pública, o cimentar das liberdades e garantias, sobretudo no que diz respeito aos direitos das mulheres e das crianças, a criação de um estado social alicerçado na nova constituição, o FITEI, nos seus 47 anos de existência, continuou fiel à sua missão.
Nestes cinquenta anos também se deu a entrada para a união europeia, a queda do muro de Berlim, o fim da Guerra Fria, o fim do milénio e o propagado fim das ideologias (com a promessa de um El Dorado capitalista de progresso eterno), a globalização e os movimentos para uma alter globalização, a crise das dívidas soberanas, a crise climática, a crise migratória, a crise pandémica, o tão desejado desacelaramento, o belicismo e o securitarismo com a sua novilíngua que se soma ao experimentado vocabulário tecnocrata e neoliberal, a já instalada quarta revolução industrial, com o advento do digital, e a atual perceção (real ou aumentada) de um potencial desmoronamento das instituições democráticas, foram acontecimentos, perceções, utopias e distopias com que o Festival conviveu. Nestes preenchidos anos, o certame nunca perdeu a relação com o sul do mundo, com esse triângulo, por diversas vezes atravessado e tensionado, que une a Península Ibérica aos continentes africano e americano. Nunca deixou de dar luta ao fatalismo, olhando sempre para a possibilidade de que o intercâmbio cultural promova a paz e cooperação entre os povos. Nunca deixando de acreditar de que ao Porto lhe pode interessar o teatro que se faz no sul do mundo e que o FITEI é esse lugar de encontro para onde convergem, também, as companhias de teatro portuguesas. Nunca desistiu de interferir criticamente naquilo a que Eduardo Lourenço chama o “impensado”, 500 anos de colonialismo português...

Aqui chegados, (e querendo entregar-vos, sem mais delongas, o que preparámos para este ano) a programação do FITEI 47 rege-se pelo tema “Trauma, Bravura e Fantasmagorias”, desenvolvendo e densificando, assim, aspetos temáticos já abordados na edição de 2023.

Dizia no programa de 2023:
“Movido pelo binómio Trauma e Bravura, o FITEI 46 busca investigar como o teatro é capaz de evocar conceitos como violência, memória e política, tão intrínsecos às comunidades afro-ibero-americanas.
É do contacto com os artistas e suas obras que emergem as urgências dos nossos tempos, reveladas sobre os palcos através da arte e daí surgindo também a nossa visão temática.
Os ataques à democracia em diferentes partes do mundo, em particular, nos países da América do Sul, a crise migratória, nas fronteiras dos países do norte com os do sul do mundo, o recente passado colonial em África ou ainda a guerra que atravessamos em território próximo do nosso, são algumas das questões que impulsionam os nossos artistas convidados a darem visibilidade, forma e significado a estas recorrentes experiências marcadas pela violência. Como podemos então reestabelecer a bravura para confrontarmos todos estes traumas?”

Uma das respostas, ensaiadas pelos artistas na 47ª edição do FITEI, investigando como o teatro é capaz de evocar conceitos como violência, memória e política, passou pela força espetral de FANTASMAGORIAS, espoletando a fantasia e aproximando algumas das obras de algo que podemos definir como espírito. Essa componente espiritual, da ordem do indizível, rememora passado, presente e um futuro imaginado.
Este ano, apresentamos 19 espetáculos, 10 nacionais e 9 internacionais, 6 coproduções, 8 estreias nacionais e 8 absolutas.

Os 50 anos do 25 de abril são também um dos elementos aglutinadores desta edição. O espetáculo de abertura é Luta Armada, da Hotel Europa. Esta coprodução continua a investigação da companhia sobre o passado recente, analisando os projetos políticos que recorreram a ações violentas como assaltos a bancos, colocação de bombas, sabotagens, entre outros, como forma de luta, em Portugal, na segunda metade do século XX.

Recebemos a estreia nacional, da brasileira Janaina Leite. Stabat Mater parte de uma pesquisa mais ampla da encenadora sobre o real no teatro - agora sob a luz do obsceno. A partir do texto teórico Stabat Mater, a artista e pesquisadora propõe o formato de uma palestra-performance sobre o feminino, voltando à história da Virgem Maria. Acompanhada pela própria mãe e pela figura de Príapo, personagem para a qual procurou um ator porno, Janaina articula de forma radical temas historicamente inconciliáveis como a maternidade e a sexualidade. O espetáculo é apresentado no palco do Grande Auditório do Rivoli.

Ao Teatro Nacional São João chega Fran Nuñez / Centro Dramático Galego, com a peça Manuela Rey Is In Da House. Esta é uma espécie de regresso triunfal post-mortem da atriz e lenda Manuela Rey aos palcos, após a estreia no Teatro Nacional D. Maria II aos 13 anos de idade, naquele que foi o primeiro ato de uma carreira fulgurante, interrompida pela morte precoce em 1866.

No Teatro Municipal de Matosinhos Constantino Nery, Ana Luz Ormazábal, artista chilena, estreia María Isabel, a personagem central desta obra, que conta e recorda uma investigação que nunca viu a luz do dia. Esta médica chilena, prisioneira em Tres Álamos enquanto membro do Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR), escreveu um manifesto feminista, juntamente com outras militantes, que abordava a realidade discriminatória das mulheres num partido revolucionário.

A partir do texto homónimo de Marguerite Duras, cinco intérpretes da ArDemente (companhia de Viseu) que na última edição do FITEI esteve em residência artística, trazem-nos O Navio Night, uma história sobre linguagem, sobre imagens, sobre escuridão e sobre desejo.

Trajetória, do Teatro do Frio, é uma performance audiovisual que emerge da recolha de sons e imagens, tecendo uma linha imaginária através dos trilhos percorridos em bicicleta por Rodrigo Malvar (sonoplasta e performer) e Gonçalo Mota (cineasta e antropólogo), durante as expedições do projeto de pesquisa Gyrovagus. Esta é uma estreia e coprodução FITEI que passa por três salas distintas – CRL Central Elétrica, Teatro Municipal de Matosinhos Constantino Nery e pelo Largo do Coreto da Beira Rio, em Viana do Castelo, territórios estes já percorridos antecipadamente pelos criadores, em bicicleta.

Já na mala voadora, o galo de Barcelos ganha vida em Old Cock. A peça encenada por Jorge Andrade conta a história de um galo que procura respostas perante o ditador que o manteve um símbolo nacionalista manipulador durante 40 anos, o próprio Salazar (versão deepfake). As sessões desta estreia e coprodução FITEI acontecem no espaço da companhia.

Uma das novidades deste ano é a colaboração com o Coliseu Porto Ageas na apresentação de uma criação do Teatro O Bando e da Companhia Olga Roriz em parceria com a Banda Sinfónica Portuguesa. Irmã Palestina - 1001 Noites procura as verdades que se escondem nas ficções e as ilusões que enevoam a realidade. Este espetáculo continua uma viagem percorrida pelas 1001 NOITES, fio condutor da tetralogia que nos próximos quatro anos ganha vida pela mão de diferentes encenadores do Teatro O Bando e que servirá de celebração do aniversário de 50 anos da companhia.

Em estreia absoluta chega, Amédée ou Como Desembaraçar-se. Ivo Alexandre, diretor artístico da Companhia DOIS, regressa ao universo burlesco e desesperadamente cómico de Ionesco, numa primeira tradução par português de Jacinto Lucas Pires. Um autor cujo poder de atração continua a expandir-se, “em progressão geométrica”, transbordando, incontrolável, do palco para a plateia e da plateia para todo o lado.

A portuense Sofia Santos Silva leva até ao Auditório Municipal de Gaia a criação Another Rose, uma colaboração com Gulabi Gang, um grupo ativista fundado por mulheres como resposta à violência sistémica e discriminação generalizada de uma sociedade assente em práticas e costumes patriarcais que banalizam a violência.

Partindo da Língua Gestual Portuguesa, Eduardo Breda encontra no movimento um terreno baldio onde arbustos, árvores de fruto, vegetação selvagem, musgo, fetos expõem a sua vulnerabilidade enquanto procuram o autoequilíbrio. A este terreno, ocupado pela diversidade, beleza e riqueza em espécies, no qual a vegetação se confunde com a ruína, chama de Matagal. Esta é uma coprodução e estreia absoluta.

Mafalda Banquart e Emanuel Santos apresentam What Plato Said To Ariana Grande. É o regresso, numa encomenda do FITEI, a este espetáculo-podcast, para o seu episódio 3. Explorando o diálogo enquanto estratégia de reflexão (comum à filosofia e ao podcast) e cujos episódios podem ser fruídos no teatro e/ou nos phones, mais tarde, quando este se juntar aos episódios 1 e 2, disponíveis online.


A segunda semana de festival arranca com One Night at the Golden Bar, de Alberto Cortés, no Pequeno Auditório do Rivoli. Partindo das palavras de Ana Torroja em La Fuerza del Destino quando diz "uma noite no Bar do Ouro, decidi atacar", este é um exercício admitido de vulnerabilidade do encenador, que procura a beleza que “aparece na declaração de amor pirosa, sentida, antiquada e queer”.

Um dramaturgo e diretor argentino aceita um convite para apresentar o seu próximo trabalho num festival no Brasil. Mas, na verdade, essa peça não existe. No hay banda propõe-se a rever o processo de escrita e de encenação de uma peça, questionando os limites da existência e da representação. Nesta estreia nacional, Martín Flores Cárdenas propõe-se a investigar o ponto zero do fenómeno teatral: o próprio corpo.

Num contexto em que o domínio do homem continua a ser imposto pelas guerras e pela violência sistemática, o exercício da ternura adquire um poder revolucionário que nos permite viver outras formas de entender a vida, longe da barbárie e da brutalidade. A Possibilidade da Ternura, da companhia chilena La Re-Sentida, materializa uma história performativa que partilha as experiências e os testemunhos de adolescentes entre os 13 e os 17 anos e é o resultado de workshops, de uma audição e de um processo de criação coletiva com estes adolescentes. A estreia acontece no Rivoli.

Voltando ao aniversário dos 50 anos da Revolução dos Cravos, o FITEI recebe, ainda, Dona pura e os camaradas de abril, da SAARACI Coletivo Teatral. Em palco, a companhia portuguesa/cabo-verdiana recria os eventos da revolução violando a cronologia sequencial, qual peças de puzzles de memórias paralelas, em distintos horizontes temporais, que convergem em torno de cravos e liberdade. Com encenação de João Branco, texto original de Germano Almeida e música original de Mário Lúcio.

Celebrando a individualidade no coletivo, Sem Palavras é o regresso da Companhia Brasileira de Teatro ao FITEI, com estreia no Teatro Nacional São João a 24 e 25 de maio. Marcio Abreu – que já se apresentou no FITEI, em 2019, com a peça Preto – propõe, nesta sua nova obra, uma reinvenção da linguagem - misturando teatro, dança, música e performance - para dar conta dos velozes acontecimentos contemporâneos, com histórias de amor, de violência, de consumo, de corpos em transição, entre outros.

Uma outra estreia e coprodução do festival chega ao Teatro Campo Alegre pelo encenador Manuel Tur. A Nossa Última Manhã Aqui conta a história de um neto de retornados, neto da revolução dos cravos e neto da liberdade. Este é um “desejo de refletir profundamente sobre o racismo, sobre a ilusão, sobre o que foi, para muitos, o momento áureo português.”

Um grupo de adolescentes decide deixar as suas famílias para trás e juntar-se num jardim para inventar e experimentar uma nova forma de viver em conjunto. Por fim, mas não menos importante, à programação do FITEI junta-se. Jardim Fantástico. Esta é uma instalação in situ, num espaço que utiliza a fantasia para ensaiar novas realidades que se propõem como alternativas a um mundo ferido. É na Casa Marta Ortigão Sampaio que a argentina Agostina Luz López apresenta esta peça, que conta com a participação de adolescentes da comunidade local, em parceria com o Museu do Porto e as escolas de teatro do Porto. Uma estreia nacional que ocupa a agenda dos últimos dias do festival.

Resta-me agradecer a todos os artistas e parceiros e desejar que o público acorra em grande número e que faça o FITEI dele também.

Bom Festival!

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Nos últimos anos, o FITEI tem vindo a apostar na secção Isto não é uma Escola FITEI, que engloba um conjunto de ações de formação — encontros, masterclasses, workshops — e reflexão crítica, aberta à comunidade e paralela aos espetáculos. Nela, os artistas que passam pela cidade do Porto partilham com o público interessado procedimentos criativos dos seus trabalhos, retomando os seus percursos num terreno que se deseja horizontal e democrático. Para a edição de 2024, contaremos com Ana Luz Ormazábal, Janaina Leite, André Amálio e Tereza Havlíčková, Marta Freitas / AMANDA, Marcio Abreu, Martín Flores Cárdenas, Renata Carvalho e Sofia Santos Silva.


No FITEI ABERTO, além das festas abertas ao público no clube popular Guindalense, este ano com Jhon Douglas, que já caracterizam a programação do festival, em 2024 o FITEI dá continuidade às Aparições no espaço público — ações inesperadas e, por vezes, improvisadas, que reúnem música ou spoken word e performance, transportando o FITEI para as ruas e configurando-se como micropolíticas de resistências. Estas ações são pensadas em conjunto com a Matéria Prima e, este ano, conta com as participações do Ensemble LIBECCIU e da Orquestra Urbana da Trofa. Acrescentam-se a estas atividades a Abertura de Processo de 88 Coisos de um Minuto, de Rubén Sabbadini e ainda uma mesa redonda que se debruça sobre a dramaturgia argentina.


No FITEI e as escolas do Porto, continuamos a criar um contexto para a apresentação de trabalhos das escolas artísticas do Porto.


Durante a primeira semana do festival, são desenvolvidas atividades específicas para programadores internacionais, o FITEI PRO como encontros entre programadores e artistas, mesas redondas, e showcases de forma a promover e consagrar o talento nacional emergente. Durante cinco dias, mais de vinte instituições e programadores, de todo o mundo, estarão presentes no festival.